sábado, 31 de dezembro de 2011

Último dia do ano

Ainda que alguns raios de sol lhe invadiram os olhos, não quis se levantar. Esticou os braços até a cômoda para olhar as horas, o relógio marcava 11h14. Ouviu sua mãe do lado de fora do quarto falando ao telefone sobre os preparativos do último dia do ano.
Levantou-se, deu um bom dia mal humorado à sua mãe e foi ao banheiro urinar. A urina escorreu quente por parte da virilha, fazendo com que a menina fechasse os olhos com prazer e alívio por realizar tal ação. Lavou o rosto, se olhou no espelho. Fitou-lhe os próprios olhos por um bom tempo. Fazia tempos que não parava para se olhar. No reflexo, nada havia mudado. Voltou a lavar o rosto, passou a água pelas mãos e as notou quentes. A mão direita passeou levemente pela esquerda, fechou os olhos tentando imaginar que esse gesto estivesse sendo feito por outra pessoa. Abriu os olhos e sentiu-se envergonhada diante de si. Sorriu para o espelho com certa amargura, não se convenceu.
Não tomou café da manhã, lavou algumas roupas e arrumou a casa. Almoçou macarrão com molho branco. Tomou mais coca-cola do que comeu. Ligou o computador e acessou as redes sociais. Visitou alguns perfis, reparou em algumas vidas. Contestou a veracidade de alguns sorrisos. Chorou diante do monitor. Contou 755 amigos, alguns "like's" e insomáveis ausências.
Cansou de ver esboços de pessoas, desligou o computador. Pensou na impotência das imagens e no amor que as pessoas possuíam por essas.
Voltou ao espelho e ficou a ajeitar uma gravata imaginária; contraiu os lábios de modo nobre; franziu as sombrancelhas; fechou e abriu os olhos. Voltou a ser quem era(dessa vez, sem nobreza nos lábios e sombrancelhas).
Do lado de fora da casa, um barulho: o labrador brincando novamente com o velho pano de chão. Esboçou um sorriso, olhou para fotografia do cachorro que estava em cima da mesa de centro, sorriu para ela também. Sentiu-se tão vulnerável quanto os perfis da internet, aqueles, amantes da imagem. Pensou melhor, deixou de sorrir para foto, voltou a observar o cachorro.
Queria começar o ano fazendo jus ao novo, mas nem o esmalte velho retirou das unhas. Tomou um banho, arrumou-se o máximo que pôde. Escolheu a roupa mais bonita; prendeu parte dos cabelos com um arranjo em forma de flor. Passou batom vermelho de tom sêco e saiu com sua mãe para jantar na casa de alguns amigos da família.
O jantar passou rápido, o vinho acelerara o tempo da noite. Começou a ouvir os fogos às 23h51, achou injusto, não queria abraços antes da meia noite.
Voltou para casa, levou para o porteiro um pedaço de torta que havia sobrado da noite. Antes de dormir, fuçou a velha caixa de fotografias. Conseguiu até sentir o cheiro das flores de cerejeira estampadas pela caixa. Não chegou a ver todas, as guardou novamente e deu a primeira dormida do ano de 2012. Não sabia se o mundo iria mesmo acabar naquele ano e, de qualquer forma, não se importava. Estava feliz em não ter o que perder.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Marco Antônio

Por muito tempo fugia da hipótese de se encontrar sozinho aonde estava: linha do metrô; à espera do próximo; 15 horas.
Costumava estar ali sempre acompanhado. Tudo agora não passava de ruídos, fragmentos de olhares, timbres que seus sentidos ainda captavam. Até a solidão invadir sua vida e lhe fazer companhia, nunca havia reparado o quão aquele ambiente cheio de gente, odores, vozes o reportavam para uma atmosfera completamente vazia dentro de si.
Antes que pudesse se lembrar de olhar para o relógio em seu pulso, sentiu a brisa trazida pela chegada do metrô. Fechou os olhos e viu flash's, lembranças dos cabelos longos e castanhos esvoaçando perto do seu rosto, levando o cheiro de xampoo cítrico até suas narinas. Abriu os olhos e percebeu que estava sendo empurrado por um certo número de pessoas afobadas para adentrarem no vagão.
Apesar da correria ao redor, não precisou apressar os passos e entrar na disputa para conseguir um banco vazio ao lado da janela que, mesmo revelando apenas as paredes escuras do mundo subterrâneo de São Paulo, ainda levavam sua preferência.
Tirou o celular do bolso e observou a própria imagem refletida através do visor do pequeno aparelho. Foi obrigado a concordar que a nova armação que comprara para seu óculos o deixara mais velho. De 40 anos, naturalmente confundidos com 50 (devido aos cabelos e barba grisalhos), passou a 60.
Após alguns instantes, ouviu a voz grave do locutor avisar os passageiros da próxima estação e o lado do desembarque. Levantou-se preparado para descer. Não o fez. Apenas colocou a cabeça para fora do vagão como se estivesse procurando por algo. Não o encontrou. Ouviu o sinal de que as portas estavam prestes a fechar e voltou a cabeça para dentro, para cutucar os restos de cola dos avisos colocados nas paredes daquele ambiente carregado de luz e sombras. Repetiu essa mesma ação em cada parada; de estação em estação com a mesma inquietude.
Tudo o que tinha eram algumas viradas de cabeça, rápidas percorridas com o olhar e a esperança empobrecida de encontrar o que procurava.
Finalmente, desceu na última estação da linha verde. Ali permaneceu por muito tempo. Uma; duas horas, talvez. Finalmente encontrou o que desejava: a linda jovem dos cabelos de odor cítrico. Fazia tempo que não a via pelo metrô, ela estava de férias do trabalho. Era empregada doméstica, beirava os 20 anos e cursava enfermagem no período noturno.
Ele, que contentáva-se apenas com a presença (ainda que desconhecida) da jovem, não sentiu-se mais só. Gostava de reparar em cada detalhe nela contido: os olhos com cílios tão castanhos e grandes quanto os cabelos, a pinta debaixo da pálpebra e os seios redondos e acesos por de trás da camisa branca.
A acompanhou até sua casa sem que ela percebesse. Quando a viu cruzar um portão enferrujado, pensou que amanhã ele haveria de dar o próximo passo para consegui-la. Quer ela quisesse ou não.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Helena

A espera parecia nunca acabar. Mesmo sendo veterana no ramo que trabalhava, a prostituta sentia a cada transa o nervosismo da primeira vez, esse, escondido no meio de tantos gemidos, bolo de cabelo misturado com saliva e barulhos da penetração.
Cinco da manhã, seria o último cliente da noite. Homem gordo, barbado, fedendo catinga e cigarro. A prostituta tratou de vestir a máscara da sagacidade, contraiu os ossos e os lábios. Estava pronta para mais uma.
Em quinze minutos o gordo já havia gozado. Deu graças à Deus por isso. Ganhou de gorjeta alguns trocados, além de virilhas assadas e mais rígidas. Não via a hora de sair daquele quarto, ir para casa tomar um banho e dormir.
Após mais duas transas de quinze minutos com o porco fedorento, partiu em direção à sua casa. Com seus passos largos e leves, caminhou pelas ruas contemplando a beleza dos bares noturnos pela manhã: viu um homem saindo para fora de um deles, estava com a camisa social para fora da calça. A prostituta colocou a mão em forma de concha sobre a testa para proteger seu rosto do sol e observar melhor aquela cena. Viu também uma mulher de cabelos encaracolados entrar pelo mesmo bar com um balde de água com detergente e um pano pendurado nos ombros.
Um pouco antes de cruzar a rua do seu apartamento, parou na padaria mais próxima. Pediu três pães dourados. No caixa, incomodou-se com uma mulher que olhava para suas pernas compridas quase nuas. Sentiu raiva. Com o troco dos pães, comprou um pirulito de maçã verde, deu-lhe uma chupada profunda, lançou um olhar provocante para a mulher que a observara e se colocou para fora da padaria, sentindo o gosto doce e ácido do pirulito. Mal cruzou a esquina e o jogou no lixo, enquanto limpava a saliva que escorria pelo canto de seus lábios.
Fez mais uma parada. Desta vez em uma banca de jornal. Prometeu a si mesma que não compraria mais nem um maço de cigarros, mas enganou e convenceu-se que o dia estava propício para algumas tragadas. Ao sair da banca, parou novamente para observar outra cena: viu uma mulher caminhar de mãos dadas com o filho pequeno, cochichando e apontando o dedo para um urso de pelúcia colocado bem na porta de uma loja de brinquedos.
Chegou na portaria do seu condomínio, deu um bom dia encantador ao porteiro. Subiu as escadas com certa dificuldade, mal avistara sua porta e já imaginava-se dentro do apartamento, ligando o chuveiro para que a água esquentasse enquanto se despia rapidamente. Assim chegou e assim o fez.
Já na banheira, decidiu não molhar os cabelos. Apesar de eles estarem um pouco oleosos, apenas os prendeu para trás, deixando que parte da franja incomodasse o piscar do olho esquerdo. Olhou para suas mãos ficando enrugadas, as passeou pelas duas coxas, indo de encontro com a vagina (que também estava um pouco enrugada). Tentou dar o mínimo de prazer que ainda restava para si, não conseguiu. Sua vagina estava contraída e dolorida demais para isso. Sentiu-se frustrada, desistiu da masturbação, desistiu do banho.
Saiu da banheira, nem enxugou-se. Molhou o chão do trajeto até a cama, jogou-se no travesseiro, dormiu até o anoitecer.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A cidade sob os meus olhos: um museu de arte moderna

Começo essa reflexão sobre o Museu de Arte Moderna (MAM) contando um relato que vivi.
Há menos de um mês, um rapaz mais velho puxou papo comigo no ônibus. Típico pai de família, pele quase mulata, voz grave, cabelo grisalho. Me pediu para escolher entre dois chicletes que havia nas mãos: um de menta e o outro de hortelã. Recusei ambos, dissimulei uma gastrite e ganhei uma conversa incrível. Se chamava José Miguel e não era nenhum tarado querendo traçar uma garota do interior. Era apenas alguém querendo conversar meio ao caos da cidade cinza.
Além de sermos duas pessoas aparentemente sozinhas na grande cidade, tínhamos outra coisa em comum: ambos não entendíamos de códigos. Ele me confessou ser pintor sem ter estudado os códigos da arte. De códigos já me bastam as placas, semáforos, apitos, buzinas que eu vejo, escuto nas ruas. E o olhar das pessoas, então? Quer código mais indecifrável que esse?
Depois de certo tempo, de passageiro de ônibus, o Zé Miguel tornou-se psicanalista para ouvir minhas angústias e anseios. E meu traseiro, ao invés de estar sentado em uma poltrona desconfortável, reportou-se para um luxuoso divã. Descobri partes de mim que jamais imaginei existirem.
Na saída do ônibus, nem demos as mãos. Você sabe, aquele distanciamento entre psicanalista e paciente. Saí correndo para avenida Paulista encontrar o amigo Nicolau Neto , que me esperava com aquela típica expressão de pouca surpresa por eu estar atrasada, alisando a barba malfeita. Cheguei lá, o termômetro marcava 25 graus; humanidade das pessoas a baixo de zero. Caminhei com Nicolau pelas ruas, contemplando a tudo com meu típico olhar de ignorância caipira. Passamos diante de um mendigo estirado na calçada e perguntei a mim mesma quando esse tipo de cena deixaria de me incomodar.
Parei para pensar no modo como a cidade se transformara em museu vivo de arte contemporânea sob os meus olhos: ambos me proporcionavam estranhamento, surpresa; ambos eram reflexos dos sentimentos, ainda que “feios”, presente nas próprias pessoas, e o principal: ambos, na maioria das vezes, eram incompreendidos.
A arte contemporânea não deixa de ser um anúncio de um tempo em que a feiura e o próprio vazio social é componente fundamental para conceituar as obras realizadas. Do mesmo modo que as pessoas não se permitem contemplar a cidade, elas não se permitem contemplar a arte, pois ambas escancaram a incompreensão de cada um para consigo mesmo e isso é confirmado pelo modo como reagimos diante de uma pintura “feia” ou um ambiente de “caos artístico”.
Fazer da cidade um museu vivo (com esculturas vivas como o Zé Miguel e andarilhos), é se confrontar com aquilo que tentamos decifrar a todo o momento: a nossa essência. Deixamos nossa zona de conforto, passando de meros espectadores da arte, para produto, parte dela.
A arte contemporânea não é apenas mais um relato da história, ela é uma chamada à história e ao olhar crítico que estabelecemos no nosso cotidiano. É uma lembrança do quão vivo estamos e o quão podemos fazer uso de todos os nossos sentidos. Tudo isso, sem pudor, sem limites ou regras (até parece que estou descrevendo um adolescente).
Temos a doce ilusão de pensar que nos conhecemos, até que é chegado o dia de irmos a um museu de arte contemporânea. Quando alguma obra nos causa estranhamento, reagimos de modo incomum e pensamos: "poxa, essa reação não é típica de mim!", quando na verdade, essa reação revela apenas mais uma faceta de nós mesmos.
Nota: O início do texto foi retirado de “Psicanalista e paciente” para ilustrar as ideias colocadas nessa reflexão.

domingo, 20 de novembro de 2011

Psicanalista e paciente

Hoje um rapaz mais velho (típico pai de família) puxou papo comigo no ônibus. Me pediu para escolher entre dois chicletes que havia nas mãos: um de menta e o outro de hortelã. Recusei ambos, dissimulei uma gastrite e ganhei uma conversa incrível.
Ele disse que havia notado meus olhos murchos, então eu disse que o medo fazia isso com os olhos das pessoas. Ele conversou comigo até minha casa. Me aliviou. Se chamava José Miguel e não era nenhum tarado querendo traçar uma garota do interior. Era apenas alguém querendo conversar no meio do caos da cidade cinza.
Perguntou se eu cantava. Tiro no escuro, certeiro. Que droga, minha voz fora descoberta, eu canto mesmo. Quando falo de coisas inteligentes, canto firme, decisivo. Quando choro, canto grave, murmurado. Quando enfureço, canto arranhado. Quando sorrio, meu canto nem se ouve.
Tive que reconhecer, o cara era um adivinhador. Dos bons, por sinal. Suas adivinhações só foram por terra quando tentou adivinhar meu nome. De Juliana me tornei Célia. Célia é nome de gente adulta, engravatada, marca de feijão. Ele me disse que tocava violão, botei fé, o cara devia ser dos bons. Pele quase mulata, voz grave, cabelo grisalho...Devia ter aprendido a tocar na infância e agora seria praticamente um mestre das cordas. Tiro no escurro, errei feio. O cara tocava há menos de 1 ano e não entendia bulhufas de notas musicais. Assim como eu. Fiquei feliz em ser a única a fazer música sem entender de partituras, códigos. De códigos já me bastavam as placas, semáforos, apitos, buzinas que eu vejo, escuto nas ruas. E o olhar das pessoas, então? Quer código mais indecifrável que esse?
Mas música não era a única coisa que tínhamos em comum. Além de não decifrarmos códigos e estarmos aparentemente sozinhos naquela cidade, ambos ficamos frustrados com o modo com que o nosso cérebro é capaz de pensar, imaginar e criar sentimentos involuntariamente. Que frustração é não poder ser dono de si mesmo.
- Às vezes eu tento parar de pensar naquilo que me aflinge, mas, por mais que minha atenção esteja deslocada em um outro plano, parece que aquela pontada de preocupação fica latejando em mim - disse eu, ridiculamente esperando que aquele desconhecido me desse algum esclarecimento sobre a minha causa.
Ótimo, de passageiro de ônibus, o Zé Miguel se tornou psicanalista. E meu traseiro, ao invés de estar sentado em uma poltrona desconfortável, se reportou para um luxuoso divã. Eu quis chorar, mas ao invés disso cantei grave, murmurado. Bombardeei o Zé com teorias freudianas baratas sobre aquilo que, na verdade, nem Freud explica. Acho que nesses últimos dias andei tentando denominar demais. A arte, a música, a mim mesma. O Zé me disse que a gente só se angustia com aquilo que não consegue entender.
Na saída do ônibus, nem demos as mãos. Você sabe, aquele distanciamento entre psicanalista e paciente.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Sou caipira

Sou caipira pra caramba. Eu rio, choro, soluço, não amargo. Sou engolida pela multidão nas ruas, peço perdão quando meus braços (mesmo que pequenos) atropelam outros braços. Sou caipira pra caramba. Deito no colo de minha mãe, meu pai. Rio de mim mesma, desfilo nua pela sala de estar, me imagino madame (só que mais feliz). Imagino casas, lugares, vidas. Sou caipira e covarde, não sei negar a mim mesma. Sou caipira, pois nunca quis ser cristal, sempre quis quebrar.
Sou tão caipira que passo batom vermelho nos lábios e me sinto gente grande. E caipira. Meu olhar acompanha as novidades sem disfarçar estranha e encantamento. Meu sorriso se faz largo, estonteante. Caipira. Nossa, como eu sou caipira.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O frio humaniza as pessoas

Sentei-me ao lado dela. De tudo que poderia dizer, não consigo pensar em nada mais marcante que os olhos. Cansados, profundos, azuis. Carregava consigo para vender um punhado de pequenos livros, coletânea de contos. A escritora era ela mesma. Na capa: "Contos" - escrito em letra de forma trêmula e desalinhada.
Sua pele me dizia que sua idade era de 30, mas os olhos beiravam os 50. Na mão esquerda, uma tatuagem de coração entre o polegar e o indicador.
Não era a primeira vez que a encontrava ali, no mesmo lugar: rua Maria Antônia, bem em frente ao portão da minha universidade. Já havia comprado um de seus livros, certa vez. Eram bons, humanos. Ao ler, tive a impressão de que a maioria deles era destinada a ela mesma. Em um dos títulos, li: "Mensagem de fé". O título me foi suficiente para entender sua história.
Fiquei a observar o modo como ela abordava os mais variados tipos de pessoas. Executivos, estudantes, trabalhadores de distintas profissões.
- Contos?
- Não - esquivava-se engravatado.
- Contos?
Ignoravam os estudantes. Resolvi puxar assunto:
- Dia difícil hoje? – sorri com um olhar doce.
- É, hoje, especialmente, elas estão mais duras – disse a mulher apontando para uma multidão que ali passava, parecendo ignorar todos os sentidos que lhe foram concebidos.
Prosseguiu:
- As pessoas não conseguem ser... - fez uma pausa quase que torturante - normais. Elas são abertas ou fechadas.
Passei um tempo ali com ela, observando o modo como seus olhos e mãos se comportavam enquanto falava. O olho direito piscava antes do esquerdo. Os dedos se contraíam a medida que as palavras lhe fugiam da cabeça. Em certo momento, um estudante lhe ofereceu esmola. Ela recusou:
- Eu não quero esmola, só quero vender o meu trabalho.
- Sabe o que é, é que eu não vou ter tempo de ler, só ando lendo coisas para faculdade... – justificou-se com voz defensiva.
- É, é, eu sei... – ironizou a mulher, como quem o quisesse longe dali o mais rápido possível. Funcionou, o estudante tratou de apertar o passo e se pôr para fora da calçada que estávamos.
- Você viu? – ela virou-se para mim – Não conseguia nem ao menos olhar nos meus olhos e dizer “não”. Parece que tinha vergonha de me dar atenção.
- Acho que você deveria chorar – sugeri como quem oferece um café.
A mulher tirou a boina que cobria sua cabeça e sorriu aliviada.
- Você tem toda razão.
Não muito tempo depois, um senhor barrigudo e careca aproximou-se de nós arrastando os passos. Interessou-se pelos tais contos:
- Quanto custa? – perguntou enquanto folheava um dos livros com sua mão enrugada e quase que em farelos.
- Apenas cinco reais! Bora comprar? – animou-se a mulher, antevendo a compra. Não estava errada. O velho retirou uma nota do bolso e, antes que pudesse perguntar, a mulher antecipou-se:
- Sim, tenho troco para vinte!
Observei aquela cena invisivelmente, sem pronunciar uma palavra.
- Patrícia Hironimus...
- É a primeira vez que acertam meu sobrenome. Bem, pelo menos é a única coisa de bom que minha mãe me deixou... – pude sentir um ar deprimente e ainda assim cômico em sua voz. Devia ser uma mulher muito espirituosa.
O sol era quase do meio-dia, algumas gotas de suor escorreram por sua testa:
- As pessoas estão assim, quase que sufocadas pelos seus ternos e impacientes, pois não está frio. O frio humaniza as pessoas.
Fiquei a pensar em suas últimas palavras quando peguei o ônibus para casa. O sol que entrava pelas janelas tostava minhas pernas já morenas.